Fim de relacionamento capilar
Artigo publicado 02 de setembro de 2021 na ES Brasil
Lamento informar, mas, desde sábado, estou sofrendo com o fim de um relacionamento. Desde então, meus cabelos estão órfãos de quem os cortem.
Vou explicar melhor: sempre tive o privilégio de cortar meu cabelo perto de casa ou do trabalho. Porém, mudei de residência há alguns anos. Inclusive, antes de decidir o local de minha nova morada, pesquisei meticulosamente se havia padaria, restaurante, farmácia e até cafeteria próximos, mas não verifiquei se tinha barbearia.
É fato que preciso dar um tapa na juba de 4 em 4 semanas, sob o risco de ficar parecido com o Capitão Caverna. Como diria uma grande amiga: “seu cabelo cresce como edifício, já o meu, como cachoeira”. Ao notar que novamente estava perigosamente me assemelhando a um lobisomem, tocou a sirene. E agora?
Foram anos errantes me lançando em barbearias distantes e que não deram um “match” capilar. Contudo, eis que no início do ano tudo mudou. Passeava solitariamente, após comprar pão e goiabada, até que avistei uma galeria decadente e sombria perto de casa. Destemido, entrei. Avistei, lá longe, um senhor de jaleco branco atrás de uma porta de vidro, cuja lâmpada fluorescente falhava com frequência.
“Nossa, será que é uma barbearia?” Apertei o passo para conferir.
Respirei fundo. Abri a porta e perguntei: “o senhor é cabeleireiro?”. Ele, sem tirar os olhos do cocuruto do cliente, grunhiu: “sou barbeiro. Aqui não tem essa parada de cabeleireiro ou coiffeur”. Prossegui: “quanto é?” Ele: “10 mangos”. Meu coração acelerou. Decidi que esperaria pacientemente a minha vez.
Enquanto aguardava, observei que uma televisão de tubo transmitia um jogo do campeonato russo. “Caramba, isso deve ser um sonho”. Perguntei se tinha wi-fi. Ele disse que sim e que não precisava de senha. Era só conectar à rede “navalha na nuca”. “Uau, que homem!” O golpe de misericórdia aconteceu quando ele abriu o armário e me mostrou uma coleção de revistas Placar. “Se você gosta de futebol, pega aí e lê o que quiser. Tá quase acabando aqui.” Nem minha mãe é tão altruísta.
No topo do monte de revistas, a edição do título da Libertadores do Vasco, de 1998. O quê? Ele ainda é vascaíno??? “Alguém me belisca.” Para quê casa? Eu quero morar ali vendo Zenit x Spartak em uma TV Telefunken, tomando café coado e curtindo revistas encardidas de futebol. E por apenas 10 contos o corte! Será que ele tem cartão fidelidade? A propósito, bons tempos do XV de Piracicaba que pude relembrar naquelas revistas.
Ah, até que ele corta o cabelo direitinho. Às vezes a franja fica torta e o espelho que usa para mostrar como o corte ficou atrás está bem rachadão. Dia desses, a navalha estava bem enferrujada. Mas, cá entre nós, coisas pequenas, né.
Porém, a minha lua de mel com esse senhor, cujo nome não sei, mas é que a cara do Gru, do Meu Malvado Favorito, durou até semana passada. Desde o início do ano, uma série de atitudes passaram a desgastar nossa relação. O futebol russo deu lugar a Casos de Família; as revistas além de não serem renovadas, passaram a dividir espaço com edições de Men´s Healthy e Boa Forma.
Ah, ele também parou de passar talco Jonhson em minha nuca para borrifar um álcool de segunda linha que ardia e pinicava muito. Foi como uma navalhada na costeleta do meu coração.
Hoje, 6 dias após o corte de relações, ainda sinto no peito a tesourada que deixou meu cabelo em pé. Durante alguns meses tivemos um contato bem acima da Imédia, no qual nos mantivemos enrolados, de cacho mesmo. Mas estou careca de saber que, se segurar as pontas, quem sabe no fim do ano ou na festa de Revlon, encontrarei alguém que seja um verdadeiro chapinha para meus cabelos e que, juntos, possamos estabelecer um relacionamento permanente.