Documentário: Schumacher – O Voo do Flow
“Você tem que se tornar um com o carro. Você tem que saber exatamente o que pode exigir do carro. Porque há um limite e você deve ter cuidado como tem com tudo o que ama na vida. Tem que ter aquele sentimento de não estar por cima nem por baixo. Se fizer isso, nós dois sairemos satisfeitos. O carro e eu. Cem por cento de perfeição.”
É com esse depoimento do piloto Michael Schumacher que se inicia o valioso documentário que comento nesse post. E é justamente por meio dessa declaração que justifico o fato de associar a trajetória do multicampeão das pistas com a criatividade.
Admito que desde 2010 não tenho acompanhado a Fórmula 1, mas em relação à era Schumacher, como espectador, posso me arriscar um pouco. Schummy sempre foi tido como um relógio, um piloto agressivo, corajoso, metódico, que errava pouquíssimo e que conseguia explorar tudo de seus carros nas corridas. Se não é lembrado por ultrapassagens inesquecíveis (mesmo que tenha várias no currículo), acabou se notabilizando pelas inúmeras voltas mais rápidas antes de ir para os boxes e, dessa forma, ganhava posições enquanto trocava os pneus de suas máquinas. Isso era incrível.
No entanto, o ponto central desse texto é que a associação entre a velocidade e a criatividade vai além da inevitável rima entre as palavras. Mihaly Csikszentmihalyi nomeia de Flow uma espécie de experiência ótima ou imersão completa na qual utilizamos toda a nossa energia, foco e conhecimento de maneira apurada e complexa, de forma que perdemos a noção de tempo e de espaço. É como se aquela atividade a que nos dedicamos ocorresse em um fluxo contínuo e detivesse nossa total atenção naquele instante, a ponto de esquecermos de nos alimentar, de descansar e até mesmo de que aquela ação precisa ser finalizada.
E isso se acentua se a atividade exigir uma maior complexidade. Csikszentmihalyi comenta que essa complexidade envolve dois processos psicológicos: a diferenciação e a integração. Explicando esses dois conceitos tendo como objeto o documentário em questão, podemos dizer que a diferenciação diz respeito ao caráter único das coisas, ou seja, aquilo que fazia de Schumacher um piloto singular: extremamente veloz, estratégico, frio e agressivo. Esses traços compõem as características que notabilizaram o heptacampeão de Fórmula 1.
Por sua vez, a integração, como um dos processos do Flow, relaciona-se à união com as outras pessoas e como um fluxo particular impacta a vida de novos sujeitos. Isso significa que, por mais que o Flow represente uma ação individual, seu espectro se amplia à medida que afeta mais indivíduos. E, nesse aspecto, este documentário, disponível na Netflix, é pródigo em mostrar que, após cada conquista, Schumacher fazia questão de agradecer e de comemorar com cada membro de sua equipe. Do cozinheiro ao mecânico, Schummy, de forma humilde (ou estratégica), se apresentava como a ponta de uma organização que precisava ser pensada holisticamente, em que cada membro tinha igual importância. Isso é incrível e vale ser refletido por gestores e estudiosos sobre liderança.
Uma sequência marcante do documentário que destaca esse aspecto da integração acontece quando, após perceber que a Ferrari não estava competitiva em relação às Mclarens, Schumacher decide trabalhar noites e dias junto com os mecânicos a fim de buscar melhoras no desempenho do seu carro. As imagens mostram os outros boxes fechados enquanto o alemão, literalmente, se suja de graxa na busca de um ajuste/set-up mais adequado para cada pista.
Apesar de não abordar alguns pontos relevantes da carreira do piloto como o GP da Aústria de 2002, em que Rubens Barrichello cede a primeira posição ao alemão próximo à bandeirada final (“Hoje não, hoje não, hoje sim, hoje sim…”), e por tentar dar uma amenizada em algumas atitudes questionáveis, como a batida em Damon Hill em 1994 e a em Jacques Villeneuve, em 1997, o documentário Schumacher encanta os fãs de automobilismo e traz grandes contribuições para se refletir sobre o conceito do Flow e sobre a relevância da preparação mental para se obter desempenhos que expandam as noções que temos sobre os limites. Vale ver esse voo do Flow.