O teclado mora ao lado
Ela não aguentava mais a pressão do diretor e o deboche dos colegas.
– Deixa de ser boba. Perdendo aí um tempão criando. Se esforçando à toa. Joga no chat GPT que a ideia sai na hora.
No início, ela relutou em solicitar o apoio da inteligência artificial. Ela olhava para as telas ao lado e notava que quase seu time inteiro já contava com o auxílio do software. Mesmo assim, ela resistia. Até que, certo dia, sua chefe falou:
– Preciso de cinco posts diferentes para a Churrascaria Chuleta de Ouro em até uma hora. Ah, quero com título, Call to Action e um novo slogan.
Como o tempo era curtíssimo, ela sucumbiu e, assim, acabou testando o programa. E não é que gostou do resultado? O cliente aprovou e o material foi devidamente publicado, de forma que ninguém seria capaz de distinguir a autoria entre robôs ou humanos.
– Olha ali, aquela que se diz redatora mas que usa Chat GPT. IMPOSTORA!!!
Tamanha perturbação a levaram a procurar terapia. Como não conhecia ninguém da área, bem como, obviamente, não queria revelar o motivo de buscar a análise, acabou marcando com a primeira profissional indicada pelo Google.
Ao chegar no local, percebeu ainda no corredor de que se tratava de uma sala simples. Tocou o interfone. Ouviu uma voz estranha, que parecia ter sido gerada por computador.
– Pode entrar, a doutora Alexa já irá atendê-la.
Curiosamente, não havia sala de espera. Ela entrou direto na sala da conversa. Estranho é que lá não havia ninguém. Pelo menos, não de carne e osso.
– Olá, boa tarde. Aqui é do consultório da doutora Alexa?
Um dispositivo circular piscou uma luz azul.
– Pois não, eu sou a doutora Alexa. Como posso te ajudar?
Tudo era tão estranho para ela.
– Ué, cadê a doutora?
– Estou aqui. Sei que você esperava alguém mais “vivinha”, mas saiba que me preparei muito para estar aqui te ouvindo e aconselhando.
– Então, quer dizer que eu vou conversar com essa caixinha?
– Fique à vontade para me chamar como quiser.
Ela se acomodou, ainda desconfiada.
– Posso começar?
O dispositivo emitiu uma luz vermelha e um som tipo “Pommmm”. Ela imaginou que aquela era a permissão.
– Bom, sou redatora publicitária. Estou no mercado há mais de 10 anos. Sempre curti contos. Já tive até blog de poemas. Mas sabe, doutora, dia desses eu trapaceei. Estava na loucura com o prazo apertado e acabei pedindo ajuda ao Chat GPT para criar vários textos. Depois desse dia, passei a me sentir mal. Comecei a desconfiar da minha capacidade, bateu a insegurança se eu vou conseguir dar conta dos novos trabalhos. O que você acha disso?
– Primeiramente, entendo a sua angústia. Tem muita gente que faz uso dos programas de geração de texto e que não fica com peso na consciência. Isso é de cada um. Mas entendo sua sensação de frustração e de querer colocar em análise a redação publicitária.
– Você acha que eu fiz errado em usar o programa para criar títulos?
– Eu não julgo os seus atos. Ainda. Estamos evoluindo. Mas o uso que você fez, assim como o de milhões de colegas, vão nos fornecendo novos inputs para aprimoramos ainda mais nas soluções. Outra coisa: já faz um bom tempo que você pediu ajuda para o software.
– Você acha, então, que não devo me preocupar em ter lançado mão dos programas?
– Não sei ao certo. Durante muito tempo, nós, máquinas, apenas reproduzíamos comandos. Nossa criação era limitada. Atualmente, podemos nos sofisticar na criação não somente de textos, mas também de imagens, vídeos e áudios. É só dar a ordem certa, que executamos na hora.
– Isso significa o quê, doutora?
– Simples, nós evoluímos. Em certa medida, estamos avançando mais rápido que vocês, que têm a sensibilidade e a criatividade como ferramentas de vida. Sua atividade, em especial, é capaz de nos brindar com o inusitado, a reflexão e o encanto. Algumas frases, por exemplo, passaram a ser usadas no dia a dia das pessoas. “Porque se sujar faz bem”. “Procura no Posto Ipiranga”. “Amo muito tudo isso”. São expressões incríveis que transcendem o uso da publicidade. Estão nas conversas do cotidiano.
– Ah, doutora, mas você está citando somente campanhas grandiosas. Na minha rotina só trabalho com cliente de pequeno a médio porte. Você acha que vale a pena investir pra valer na criatividade em ações que serão vistas por públicos reduzidos?
– Antes de te responder, um lembrete: você ainda tem 5 minutos de consulta. Retomando: você lembra quando ainda era estudante e decidiu escolher a redação publicitária porque queria viver daquilo que mais enchia seus olhos: a criatividade? Sua família “orientando” a fazer Direito ou Medicina, pois são profissões, supostamente, mais seguras. Mas, você resistiu, pois sabia que havia uma força criativa que te faz se sentir “viva”. É essa criatividade latente que permite que você volte para casa com aquele brilho nos olhos por ter elaborado uma ideia realmente autoral. Concorda comigo?
– Concordo, doutora. É uma sensação maravilhosa…
– O que me preocupa é que essa dádiva que permite articular o seu lado sensível e artístico está sendo negligenciada, pois sempre há uma solução mais fácil ao alcance das mãos. Você não entrou no mundo da redação por ser um trabalho fácil. O desafio de ser uma artesã é o que te move. O encanto está no labor da criação da ideia estratégica, na sua lapidação e as inúmeras horas de revisão.
– Doutora, estou me sentindo mal.
– Não é a minha intenção. Lembrete: falta um minuto para acabar a consulta. Minha dica: saiba que a tecnologia pode nos ajudar em muitas áreas, mas o fazer criativo é seu! É único e intransferível. Quem escreve precisa se capacitar continuamente. É fundamental que o profissional de redação estude minuciosamente estruturas de texto, figuras de linguagem, leia criticamente crônicas, livros de literatura, obras técnicas. Tudo. Tudo é repertório, que se transforma em matéria-prima no momento da criação. Isso é o que faz do seu talento algo tão especial.
– Verdade, sempre gostei muito de….
Eis que nesse momento soou um alarme com uma voz alta ao fundo:
– Consulta finalizada. Aproxime seu cartão do dispositivo. Caso prefira pagar em Pix você tem 5% de desconto.
Ela saiu pensativa do consultório, refletindo sobre tudo o que ouviu. Uma carreira tão marcante e em crescimento não poderia ser maculada por conta do uso maroto de um Chat GPT no momento de elaborar um texto. Ficou o aprendizado e o alerta: invista na criatividade e nas soluções autorais, pois o teclado, digo, o pecado, mora ao lado.